Era especialmente lindo, tinha cabelos lisos, finos, raspado à máquina número dois, era adoravelmente tímido, tinha belos e imensos olhos castanhos-claros, a boca parecia uma escultura greco-romana tão bem desenhada, os lábios tinham a cor do fogo, o corpo de um Adônis, a inocência de um Davi.
Entretanto não era tão perfeito como Adônis, nem tão inocente como Davi.
Tinha algo que escondia por entre seu corpo marcado por demônios, dragões, rostos desfigurados de seres demoníacos. Escondia uma história de dor, de sofrimento psíquico, de rejeição, de falta de amor próprio, de falta de carinho, de falta de contato autêntico com os outros, mas principalmente consigo mesmo.
A história de cada homem esconde a fatalidade a que está destinado, alguns ferem somente a alma, outros perfuram o corpo, este, especialmente este, marcava para sempre seu sofrimento no corpo. Mas qual o sentido de gravar o sofrimento? De deixá-lo registrado.
Pareceria ser mais eficiente marcá-lo com histórias felizes, mas o que faz o homem que não evidencia suas alegrias? Como poderíamos saber onde ele as guarda?
Fumava dois maços de cigarro por dia, bebia incontrolavelmente, consumiu desde tenra infância todo tipo de droga. Todo tipo de experiência suicida já havia experimentado. O quão realmente buscava a morte? A cada dia parecia tentar matar uma parte de si mesmo que não suportava ver, conhecer, descobrir. Alienava-se da realidade dolorida de ter de se olhar no espelho, pois seu corpo demonstrava a violência sofrida, a tentativa frustrada de esvair-se. Não tinha coragem de olhar-se no espelho e quando o fazia o que ele refletia não era bonito de se ver.
Tinha ídolos suicidas, monstros internacionalmente conhecidos, seres que abominam a própria existência e transforma em arte seu sofrimento.
Imenso número de débeis que promovem seguidores! Anencéfalos! Mentecaptos!
Inerte ela o amava e via sua degradação, olhava-o sem nada poder fazer, pois não havia como ajudar aquele que não conseguia amar a si mesmo. Eram dois seres sofrendo, cada um a seu modo. O que os distinguia era a certeza do que ela buscava, e nem tão certa assim estava. Ela com toda sua eloqüência, inteligência, perspicácia e sabedoria nada podia fazer, pois era tão prisioneira dos próprios sentimentos quanto ele. Ele marcava o corpo, ela se perfurava, tinha piercings em várias partes tinha pelo menos uma dúzia de furos nas orelhas. Ela disfarçava seu sofrimento com o que considerava um adorno, uma moda fashion.
Mulheres são perfeitas em transformar a dor em algo belo, sua natureza narcísea não permite que seu sofrimento seja estampado de modo derradeiro, agressivo, a menos que o que tenha a esconder seja muito terrível ou cruel. A fatalidade da existência está em como ela pode ser disfarçada para que o outro não nos conheça verdadeiramente.
Nestes tempos estavam em moda ser depressivo, sofrer de transtorno bipolar e ser hiperativo.
Eram dois seres marcados pelo aprisionamento de suas emoções, pela falta de um diálogo autêntico consigo mesmo e com o outro. O único encontro que tinham eram de beijos ardentes e um amor que não os levaria a lugar algum, pois os planetas de onde haviam saído ficavam anos-luz de distância um do outro, a língua falada por cada um era quase incompreensível ao outro. Entendiam-se sim, na dor. Cada um a seu modo sabia do que o outro precisava, pois bastava que ela percebesse suas próprias necessidades e saberia as dele, bastava que ele reconhecesse as próprias necessidades e identificaria as dela, coincidência ou não, nasceram no mesmo mês, no mesmo dia e hora. Tinham outras pecualiaridades em comum, a mãe de ambos fez o papel de mãe-pai, sufocando muitas vezes, mas no intuito de fazê-los respirar. Como a doença pode ser perpetuada de geração para geração. O que mais havia de semelhante entre eles? Os dois tinham ascendência européia, os dois estavam na casa dos trinta e poucos anos, os dois estavam com a vida mal resolvida, a sentimental destruída e não viam perspectivas de reconstrução. Ela não havia feito nada de errado ou ilícito na sua vida certinha, mas tinha seus monstros para defrontar, monstros internos e externos, o interno estaria lá para sempre e ela teria de saber conviver com ele. O monstro externo ela estava tentando aniquilar de sua vida, mas quanto mais energia desprendia para defrontá-lo mais amordaçada por ele ficava, era uma briga estéril, ele era mais forte.
Ela sabia também o que a fazia amar aquele homem tão sofrido quanto ela: a dor de ambos. Ele era o espelho dela, ele era aquilo que ela sempre temeu, tinha horror a drogas e seu temor a fazia fugir de situações de risco. A menina certinha de família boa que nunca havia feito nada de errado. Era uma farsa inenarrável a vida que tinha, estava se descobrindo aos trinta e poucos anos, antes tarde do que nunca. Tinha a certeza que não experimentaria as drogas, mesmo porque seu espelho estava a sua frente e ela não desejava transformar-se nele, não desejava a morte como ele, tinha suas dores, tinha vicíos mas não desejava ser vista como vagabunda inerte, uma paria na sociedade. Ela tinha ambições realizáveis. Mas o que mais buscou na vida, o que mais desejou estava esvaindo-se de realizar.
O tempo é o grande amigo dos homens e o maior inimigo das mulheres. Quanto mais ela tinha esta certeza mais depressiva tornava-se, estava em busca do tempo perdido, mas este era inexorável e nada mais tinha a fazer a não ser esperar pelos acontecimentos futuros.
Ele e ela eram dois doentes, buscando cada um não deixar o outro o ver e perceber sua doença, esforçavam-se freneticamente para esconder-se em suas conchas e quanto mais temiam e tentavam distanciar-se mais confluíam. Ela tinha a ambição de vir a ser a parte boa do espelho dele e tinha a certeza de que a parte má dele também era a dela. Os dois tendiam aos vícios e capitulavam a eles com a mesma facilidade que crianças gostam de doces ao experimentá-los pela primeira vez.
Quanta gentileza poderia ser trocada entre eles e entre os que se relacionavam com os mesmos, eram vistos como seres extremamente educados, gentis, “uns amores”, ninguém os via realmente, ninguém penetrava suas muralhas, mas eles haviam penetrado um a muralha do outro e estavam aterrorizados com o que poderiam sentir um em relação ao outro.
Ela não teria coragem de apresentá-lo a família, e seria breve o momento da separação, ele teria que aprender a valorizar-se para ficar ao lado dela, poderiam construir muito unidos, mas havia algo que jamais construiriam juntos, jamais seriam uma família, as limitações dos dois os condenavam. E pateticamente era desejo dos dois ter a possibilidade de acertar onde suas vidas foram tão destruídas. Ele bebia, e fumava maconha e cheirava cocaína. Ela fumava, não se alimentava e sofria e chorava, lágrimas que não escorriam por sua face, pois não havia mais de onde tirá-las, era consciente demais, racional demais, inteligente demais para produzi-las.
Chorava sua alma e seu desespero ao escutar músicas de romances do passado. Romances que acabaram em tragédia. Não acreditava mais no amor. Nem ele. Discutiam o amor verdadeiro e chegavam à conclusão de que todo amor era uma mentira idealizada e não davam crédito aos próprios sentimentos. Quando sentiriam a falta um do outro? Talvez quando não estivessem mais juntos e com a carta que ela enviaria a ele pouco antes de morrer.
A INCOGNITA?
A incógnita esta na carta que ela recebeu e que não leu, dele avisando-lhe que ao receber e ler ele não se encontraria mais neste plano existencial, pois a vida havia se tornado um fardo insuportável.
Coincidência ou não, morreram no mesmo dia, 24 de dezembro, cada um no seu planeta, anos-luz de distância um do outro, sem terem coragem (ou covardia?) suficiente para assumir o que sentiam um pelo outro, sem deixarem-se conhecer um pelo outro, mas tenho a esperança de que em algum lugar no íntimo de cada um, sabiam o que os unia, sabiam respeitar as próprias limitações e as do outro, um era o reflexo do outro. Ela a parte boa apodrecendo, ele a parte podre tentando resgatar-se, um não sabia como resgatar o outro, então chegou a hora do Adeus para ambos. Nesse momento encontraram-se.
Por Izd Sun Ril
2004